A anestesia cultural<br>não é uma injecção<br>de democracia
O artigo de António Guerreiro saído no Ípsilon de 11 de Dezembro de 2015 recupera a ideia de anestesia, desta feita para caracterizar os efeitos daquilo a que o seu autor chama de «culturalização global da vida».
«A anestesia cultural» é o título do texto que consegue detectar alguns dos sintomas da doença e até o poderíamos saudar apenas por isso não fosse o arsenal argumentativo de António Guerreiro mergulhar numa profusão de conceitos contraditórios, amalgamando-os, baralhando a sua operacionalidade combativa, diluindo num mesmo campo de «normatividade cultural» forças antagónicas em luta, uma diluição que é veículo comum não daqueles que resistem às «forças perniciosas» mas antes dos que as promovem conscientemente ou por descuido.
A determinada altura António Guerreiro afirma que «a questão já não é “como defender a cultura?”, mas antes como defendermo-nos da cultura?». É nesta máxima que reside o fulcro de um amontoado de equívocos que culmina noutro apregoar sonante: «defendermo-nos da cultura, da democracia cultural, é resistir a forças perniciosas.»
Quando colocamos determinados conceitos, se o objectivo é fazer-se crítica da actual situação, não é um pormenor sem relevância mostrar de onde os olhamos, se da perspectiva da ideologia dominante das classes dominantes, se da perspectiva das classes oprimidas em luta pela transformação revolucionária da sociedade.
Na verdade, exploradores e explorados clamam por liberdade, mas se os primeiros clamam pela liberdade de explorarem o trabalho humano alheio, os segundos clamam pela liberdade de não serem explorados. Obviamente a vitória de uma destas liberdades exclui a outra.
De igual forma, para as classes dominantes a cultura interessa enquanto negócio em expansão e factor do seu domínio, num processo em que o capital explora necessidades que ele próprio configura, gerando e alimentando concepções que reduzem a cultura a mais uma área de mercado ou a mais um sector de produção e troca de mercadorias, fazendo aparecer novas áreas de lucro potencial e de aculturação ou disseminação dos valores da ideologia dominante.*
No campo oposto, para as classes dominadas em luta, a cultura tende a ser um terreno de combate contra a ideologia dominante e um factor de emancipação social, individual e colectiva; um agente histórico de enriquecimento do nosso aparelho perceptivo e de configuração da humanidade dos sentidos; uma antecipação provisória e um compromisso com o livre jogo das faculdades do humano.**
Neste terreno de combate, e no momento actual, a luta pela democratização da cultura, pelo acesso generalizado às ferramentas da criação e fruição cultural, contra a mercantilização da cultura, pela responsabilização do Estado na assumpção das suas funções sociais e culturais exige acção, esclarecimento e precisão nas abordagens teóricas.
Confundir democratização cultural com massificação cultural, que é o que parece ter acontecido a António Guerreiro, em nada ajuda a elevar o debate e gera um confusionismo que contribui, aliás, para anestesiar a luta concreta pelos direitos culturais.
Alternativa à hegemonia
A massificação cultural promovida através dos meios e instrumentos monopolizados (e por isso comandados) pela ideologia dominante é de facto indiferenciadora, homogeneizadora, pacificadora, ilusionista na sua tentativa de harmonizar interesses de classe antagónicos. É consequência directa do processo capitalista de mercantilização da cultura, gerador de uma panóplia de produtos culturais espectaculares, tendencialmente desprovidos de qualquer autonomia criativa dos trabalhadores que as produzem, e destinados a serem consumidos por uma enorme massa que o capitalismo pretende passivizada, altamente manipulável através de interacções ilusórias, despolitizada, em suma, anestesiada.
A democratização cultural, pelo contrário, ainda que implique uma forma de massificação enquanto momento de generalização do acesso às ferramentas e formas da criação e fruição da cultura, implica de forma decisiva a abertura das possibilidades de escolhas e a prática da participação e a auto-reflexão sobre ela. ***
O processo de democratização cultural no nosso país é fruto da Revolução de Abril e encontra-se consagrado na Constituição dela saída. É um processo que permitiu, num curto espaço de tempo, superar o atraso cultural a que o fascismo tinha condenado o país. Apesar de bloqueado por quatro décadas de política de direita trata-se de um projecto que mantém toda a sua actualidade e que se projecta no futuro enquanto factor de emancipação social e individual.
A luta pela democratização da cultura assume portanto, na nossa época, (e não obstante a utilização deste termo por parte de alguns com o objectivo de encapotar políticas que fazem favores ao negócio cultural), uma importância determinante na politização da esfera da cultura. É uma luta que está na rua e da qual a «arte e a literatura» não precisam de defender-se. Só têm a ganhar, aliás, em unirem-se ao combate.
Esta luta pela alternativa à hegemonia cultural do capital é o oposto da anestesia por ele operada: é antes uma injecção de inconformismo organizado.
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* ver conclusões do Encontro Nacional do PCP sobre cultura: a vertente cultural da democracia. Emancipação, Transformação, Liberdade. Realizado a 26 de Maio de 2007 em Lisboa;
** ibidem
*** ibidem